Dois pensamentos sobre Crise de Identidade Profissional
Se você tem o privilégio de refletir, fazer planos e pensar sobre a própria vida, talvez já tenha se deparado com alguma crise de identidade. Eu tenho enfrentado uma e, ouvindo e trocando ideias com pessoas da minha idade, convenço-me de que a a crise de identidade profissional é um mal da minha geração.
Parece haver um grande desconforto, uma inquietude. Ela se origina em uma desconexão com os propósitos da função que se exerce, ou com o mercado, ou mesmo com as pessoas com quem precisamos nos relacionar profissionalmente.
As raízes disso eu creio que podem ser a própria “mudança de paradigma” em relação às expectativas profissionais, a transformação da relação pessoal com o trabalho que a nossa geração criou. Questionamos as “verdades” aprendidas e grande parte delas parece não se sustentar. Estamos em um processo de desconstrução da ideia de que determinadas profissões são “bem sucedidas”, de que ser “concursado” é o caminho para a felicidade, e principalmente do “papel” do trabalho em nossa existência, indagando a respeito da própria concepção do que é ser alguém “bem sucedido”, de quais valores fazem sentido para nossas vidas.
Além disso, creio que nossa insatisfação às vezes se relaciona também com um ideal “romântico” sobre trabalhar com o que “se gosta”, um discurso que ultimamente tem sido bem difundido.
Por fim, percebo ainda que uma questão que enfrentamos relaciona-se com a noção de que nossa identidade pessoal é definida pelo ofício que ocupamos.
É uma questão complexa, mas o ponto em que quero chegar é que estas crises às vezes nos levam à conclusão de que tudo está errado e que o único caminho é mudar de rumo, de profissão, de área. E eventualmente este é de fato um caminho que pode se mostrar satisfatório. Eu, sendo alguém que já chegou a esta conclusão, peguei-me outro dia percebendo que havia ignorado algumas questões, e resolvi compartilhá-las.
1) Você não é o seu trabalho. Isso mesmo, você não se define ou se limita por seu trabalho. A forma que você encontrou para pagar os seus boletos não define você como indivíduo. Não necessariamente é por meio dela que você vai se “realizar”. Pode ser que sim. Pode ser muito bom se isso acontecer. Mas pode também ser encarado como uma forma, veja bem, de pagar as contas. E pode ser uma forma passageira, enquanto você tenta descobrir outros meios de obter renda que talvez façam você se sentir mais “realizado”, mais conectado com seus propósitos de vida. Ou enquanto você pensa a respeito de virar hippie, de mudar-se pra uma comunidade alternativa. Ou pode ser a forma de pagar boletos, enquanto você busca realização em outras atividades. Enfim. Você não precisa colocar o peso de “ser” o seu trabalho. Somos muito mais que isso. É claro que é importante prestar atenção neste aspecto da vida, dado o tempo que costumamos dedicar a ele. É imprescindível perceber seu ambiente de trabalho, pois um espaço nocivo vai refletir em sua saúde física e mental. Mas não sendo este o problema, pode ser apenas uma questão de alinhamento das expectativas que você tem em relação a este aspecto da vida.
Sobre este tema, esse Podcast do Mamilos é simplesmente maravilhoso e debate isso.
2) Pode ser que você só não esteja conectado com a “vertente” da sua área que se alinha aos seus ideais, situação que pode fazer você ter a impressão de que a sua área não é mais pra você, pois você não se identifica com as perspectivas ou os valores que atualmente preponderam no exercício da sua profissão. Eventualmente o que nos falta é mesmo perspectiva, é encontrar pessoas com as mesmas inquietações que as nossas. Muitas vezes elas já existem na nossa área, mas não esbarramos com elas ainda e nos sentimos não pertencentes àquele ramo. Em outros casos, talvez de fato ainda não tenham discutido estas questões que deixam você inquieto, e talvez haja aí um espaço para você tentar explorar ideias novas, propagando-as.
Vou tentar exemplificar com a minha experiência. Sou formada em Direito. Por algum tempo, durante e após a faculdade, fui deslumbrada pelo “universo jurídico”. Vindo de uma família humilde e com pouca instrução, o conhecimentos e a compreensão social que a oportunidade da graduação me trouxe transformou completamente a minha vida. E por algum tempo eu segui assimilando, estudando, almejando a carreira do Ministério Público. Depois de formada, a prática me trouxe muitas questões e um grande desanimo com as perspectivas profissionais. Percebi que não me sentia ideologicamente conectada com as “crenças” da maioria dos meus colegas, tampouco com os “valores” institucionais da carreira que eu almejava. Eu não queria ser mais um parafuso da engrenagem, queria discutir a engrenagem, queria quebrar a roda. Achei que o Direito não era pra mim. E boa parte do Direito, da prática jurídica da forma que é exercida hoje, não é mesmo. Passei a traçar uma estratégia para mudar de profissão. Continuei trabalhando, pagando os boletos. Durante este período fui a uma palestra sobre Justiça Restaurativa. E isso despertou novamente meu interesse pelo Direito. Descobri que aqui mesmo, no Tribunal, existem pessoas discutindo temas para além da caixinha tradicional que usamos em nosso dia-a-dia, buscando outras ferramentas e tentando aprender com outros sistemas. Estavam aqui do meu lado e eu não sabia. Às vezes pode ser isso, pode existir mais gente com as mesmas inquietações que as suas, debatendo e buscando soluções, você só precisa encontrá-las. A internet tem se mostrado um mecanismo incrível para viabilizar este tipo de conexão.
Então, você já questionou se não há algum ramo, dentro da sua área, com o qual você pode ter mais afinidade? Enfim, é sempre bom pensar sobre nossas possibilidades.
Pode ser que você tenha olhado para “dentro” e de fato descoberto que suas escolhas profissionais foram motivadas por razões equivocadas, ou que você se transformou a ponto de elas não fazerem mais sentido. E tudo bem! Faz parte da vida, explorar novas possibilidades pode ser incrivelmente revigorante e necessário, mas pensar sobre a nossa insatisfação e as escolhas que temos é também essencial.
Todo trabalho vai ter seus aspectos negativos e eles vão pesar de um modo diferente para cada indivíduo. Compreender o trabalho dentro das classes sociais também é necessário, pra entender a complexidade do sistema em que nos encontramos e para entender que talvez as próprias engrenagens do sistema inviabilizem nossa felicidade. As crises profissionais são mais comuns do que a gente imagina, lidar com elas de forma saudável só é possível quando nos conhecemos e pensamos a respeito do que nos move, mas também quando voltamos nosso olhar para o que nos cerca, entendendo e pautando nossas escolhas em expectativas realistas.